por Ilse Marcelina Bernardi Lora
Antes que se aborde a temática da prescrição, objeto central do presente estudo, mostra-se necessário exame acerca da competência para apreciar demandas ajuizadas por empregados em face do empregador, tendo por objeto indenização de danos decorrentes de acidente do trabalho. Com efeito, a “viragem jurisprudencial” ocorrida no seio do Supremo Tribunal Federal em meados do ano de 2005 fez recrudescer o interesse pelo assunto, potencializando também o debate acerca da prescrição aplicável a tais pretensões.
A competência para julgamento de ações envolvendo pedidos de indenização em razão de infortúnio laboral é tema que provocou acentuada controvérsia na doutrina e jurisprudência, notadamente após a promulgação da Emenda Constitucional 45. Todavia, em face da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 29 de junho de 2005, no julgamento do Conflito de Competência 7.204-1, de Minas Gerais, vislumbra-se a possibilidade de superação da celeuma, consagrando-se a competência da Justiça do Trabalho para julgamento dos pedidos deduzidos por empregados em face do empregador, em ações de reparação de danos causados por acidentes do trabalho. A decisão tomada no processo mencionado é de seguinte teor:
“Decisão: O tribunal, por unanimidade, conheceu do conflito e, por maioria, definiu a competência da Justiça Trabalhista, a partir da Emenda Constitucional 45/04, para julgamento das ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho, vencido, no caso, o senhor ministro Marco Aurélio, na medida em que não estabelecia a edição da emenda constitucional como marco temporal para competência da Justiça Trabalhista.”
Assinalou o ministro relator Carlos Ayres Britto em seu voto:
“11.Remarque, então, que as causas de acidente do trabalho, excepcionalmente excluídas da competência dos juízes federais, só podem ser as chamadas ações acidentárias. Ações, como sabido, movidas pelo segurado contra o INSS, a fim de discutir questão atinente a benefício previdenciário. Logo, feitos em que se faz presente interesse de uma autarquia federal, é certo, mas que, por exceção, se deslocam para a competência da Justiça comum dos estados. Por que não repetir? Tais ações, expressamente excluídas da competência dos juízes federais, passam a caber à Justiça comum dos estados, segundo o critério residual de distribuição de competência. Tudo conforme serena jurisprudência desta nossa Corte de Justiça, cristalizada no enunciado da Súmula 501.
12. Outra, porém, é a hipótese das ações reparadoras de danos oriundos de acidente do trabalho, quando ajuizadas pelo empregado contra o seu empregador. Não contra o INSS. É que, agora, não há interesse da União, nem de entidade autárquica ou de empresa pública federal, a menos, claro, que uma delas esteja na condição de empregadora. O interesse, reitere-se, apenas diz respeito ao empregado e seu empregador. Sendo desses dois únicos protagonistas a legitimidade processual para figurar nos pólos ativo e passivo da ação, respectivamente. (...)
21. Por todo o exposto, e forte no artigo 114 da Lei Maior (redações anterior e posterior à EC 45/2004), concluo que não se pode excluir da competência da Justiça Laboral as ações de reparação de danos morais e patrimoniais decorrente de acidente de trabalho, propostas pelo empregado contra o empregador. Menos ainda para incluí-las na competência da Justiça comum estadual, com base no inciso I do art. 109 da Carta de Outubro.”
A revisão do entendimento, conforme assinalado nos votos dos ministros do STF, no julgamento em questão, deveu-se ao excelente trabalho de amicus curiae do ilustre magistrado Sebastião Geraldo de Oliveira, cujos esclarecimentos determinaram interpretação do artigo 109, I, da Constituição Federal, diversa daquela que reiteradamente vinha sendo conferida pela mais alta corte da Justiça brasileira ao referido dispositivo.
Com efeito, até então o Supremo Tribunal Federal, invocando o conteúdo do artigo 109, I, da Constituição Federal, quando instado a pronunciar-se sobre a matéria, reconhecia que os conflitos da espécie deveriam ser dirimidos pela Justiça Estadual1. No mesmo sentido era a posição do Superior Tribunal de Justiça, conforme dá notícia o julgamento de sucessivos conflitos de competência instaurados acerca da matéria, sendo a matéria objeto de súmula2. No âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, observavam-se opiniões divergentes. A Turma do TST, em acórdão da lavra do ministro João Oreste Dalazen, proclamou a competência da Justiça do Trabalho para as lides envolvendo danos físicos e morais decorrentes de acidente de trabalho. A ementa foi assim redigida:
COMPETÊNCIA MATERIAL — JUSTIÇA DO TRABALHO — DANO MORAL E MATERIAL — ACIDENTE DE TRABALHO — 1. A Constituição Federal inscreveu na competência da Justiça do Trabalho as lides em que se controverte sobre dano moral e patrimonial decorrentes da relação de trabalho, consoante disposição contida no artigo 114, inciso VI, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45/04.
2. Importaria, assim, contra-senso cindir ou fragmentar a competência por dano moral, conforme a lesão proviesse, ou não, de acidente de trabalho, de tal modo que se negasse a competência material da Justiça do Trabalho para causas em que se discute indenização por danos morais apenas quando oriundos de acidente de trabalho.
3. Tal circunstância poderia ensejar discrepância entre as decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, no concernente ao exame da estabilidade provisória prevista no artigo 118 da Lei 8.212/91, decorrente de acidente de trabalho, e pela Justiça Estadual, em relação à indenização por acidente de trabalho.
4. Inscreve-se, portanto, na competência material da Justiça do Trabalho o equacionamento de litígio entre empregado e empregador por indenização decorrente de supostos danos físicos e morais advindos de acidente de trabalho, a que se equipara a doença profissional. Inteligência do artigo 114, incisos I e VI, da Constituição Federal.
5. Recurso de revista conhecido e provido. (TST — RR 2295/2002-029-12-00.5 — 1ª T. — Rel. Min. João Oreste Dalazen – DJU 01.07.2005)
Em sentido oposto, pronunciou-se a 4ª Turma daquele mesmo tribunal:
RECURSO DE REVISTA INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO — INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO — 1. Consoante o disposto no artigo 109, I, da CF, excetua-se da competência dos juízes federais o processamento e julgamento das causas alusivas à falência, a acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.
2. Nesse contexto, interpretando-se o referido dispositivo constitucional, verifica-se que, se a competência para apreciar demanda alusiva a acidente de trabalho fosse da Justiça do Trabalho, não haveria necessidade de estar listada no referido dispositivo, tendo em vista que as demandas alusivas a esta especializada também foram excetuadas. Logo, conclui-se que tal dispositivo se presta a fundamentar a competência da Justiça comum Estadual para julgar questão referente a acidente de trabalho.
3. Por outro lado, a Constituição Federal, no artigo 114, VI, determina que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral decorrente da relação de trabalho.
4. Na hipótese vertente, foi postulada indenização por dano moral decorrente de acidente de trabalho, de modo que nos deparamos com um comando constitucional no sentido de que a competência é da Justiça comum Estadual, por decorrer de acidente (art. 109, I) E outro no sentido de que a competência é da Justiça do Trabalho, por se tratar de dano moral (art. 114, VI), já que nenhum dos dois abrange integralmente as características do pedido. Assim posto o dilema, que faz emergir eventual contradição tópica na Constituição, cabe ao STF, fazer a opção entre os dispositivos aparentemente, conflitantes.
5. Por sua vez, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal segue no sentido de que a Justiça do Trabalho é absolutamente incompetente para julgar pedido de indenização por dano moral decorrente de acidente de trabalho.
6. Portanto, concluiu-se que o STF fez prevalecer, dentro do universo constitucional, o artigo 109, I, sobre o 114, VI, da Carta Política. Recurso de revista conhecido e desprovido. (TST – RR 1.709/2003-012-18-00.5 – 4ª T. – Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho – DJU 20.05.2005).
Há a expectativa de que as turmas do Tribunal Superior do Trabalho, que proclamavam, com base no antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal, a incompetência da Justiça do Trabalho para ações da espécie, promovam a revisão de sua posição, acompanhando a nova e adequada interpretação dada ao artigo 109, I, da Constituição Federal pela mais alta corte de Justiça brasileira.
Embora o julgamento pelo STF tenha se dado em conflito de competência, sem efeito vinculante, portanto, sinalizou, máxime por se tratar de decisão unânime (a divergência do ministro Marco Aurélio apenas diz respeito ao marco temporal para competência da Justiça trabalhista, conforme se observa da decisão supra transcrita), que doravante este será o encaminhamento a ser dado pelo STF à matéria.
Dada a autoridade de suas decisões, a reviravolta operada no Supremo Tribunal Federal, no particular, provocou imediatos reflexos nas demais esferas do Poder Judiciário. Em conseqüência, a esmagadora maioria dos juízes de Direito, muitos por orientação dos Tribunais de Justiça, passou a encaminhar à Justiça do Trabalho os processos ajuizados na Justiça Estadual por empregados contra seus empregadores, envolvendo reparação de danos morais e materiais decorrentes de acidentes do trabalho, que se encontram em fase de conhecimento.
Questão que vem causando perplexidade no julgamento de tais ações pela Justiça do Trabalho diz respeito à prescrição aplicável, matéria que se buscará analisar no decorrer deste breve estudo, em especial diante de seu significativo relevo, pois, não raro, após anos de tramitação na Justiça Estadual, o processo, chegando à Vara do Trabalho, é extinto, com exame do mérito, em razão da pronúncia da prescrição disciplinada no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal, muitas vezes apenas argüida pelo interessado após o encaminhamento dos autos pela Justiça Estadual.
Não obstante o respeito que se deva tributar aos defensores deste posicionamento, ousa-se argumentar que o entendimento subverte os próprios fundamentos da prescrição, a par de ensejar decisões conspurcadas pelo malfadado sinete da facilidade que de uns tempos a esta parte andou a sorrateiramente rondar o espírito dos julgadores, assoberbados pelo volume de processos e complexidade das novas matérias.
Não se ignora que a carga brutal de processos, previsível diante do significativo alargamento da competência da Justiça do Trabalho, determina aos magistrados trabalhistas a necessidade de redobrado esforço. Todavia, deve-se aceitar o desafio, em especial diante da maior capilaridade da Justiça do Trabalho, determinada pela gradativa instalação de novas varas, circunstância que, aliada à necessária sensibilidade dos tribunais na distribuição de juízes auxiliares, permitirá absorver e dar resposta efetiva a esta instigante e ao mesmo tempo árdua tarefa.
Processos ajuizados perante a Justiça do Trabalho
Conforme anota Sebastião Geraldo de Oliveira, há controvérsia na doutrina e na jurisprudência sobre a prescrição aplicável às demandas acidentárias. Um dos segmentos defende o entendimento de que se trata de direito de natureza civil e, como tal, sujeito ao prazo prescricional disciplinado no Código Civil. Outra corrente, todavia, advoga a aplicação dos prazos previstos no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal. O ilustre doutrinador assinala a respeito:
“Entendemos, porém, que a indenização por acidente do trabalho é também um direito de natureza trabalhista, diante da previsão contida no artigo 7º, XXVIII, da Constituição da República de 1988, devendo-se aplicar, portanto, a prescrição de cinco ou dois anos prevista no inciso XXIX do mesmo artigo 7º. Esse argumento, sem dúvida, é de fácil acolhida porque a indenização, na hipótese, não deixa de ser ‘um crédito resultante da relação de trabalho’, mesmo que atípico, e o litígio tem como partes o empregado e o empregador. De acordo com a observação de Arnaldo Süssekind, a ‘expressão créditos resultantes das relações de trabalho’ foi inserida no texto com sua significação mais genérica. Corresponde aos direitos do sujeito ativo das obrigações (o trabalhador), contra o qual corre a prescrição: direito a prestações de dar, de fazer ou de não fazer, que devem ser satisfeitas pelo sujeito passivo da obrigação (o empregador ou o tomador de serviços), em favor de quem flui a prescrição”.3
Comunga-se do entendimento esposado pelo eminente magistrado mineiro. Com efeito, ainda que se trate de pretensão fundada em responsabilidade extracontratual, inegável sua vinculação direta e estreita com o contrato de trabalho. Sendo a causalidade, na hipótese de infortúnio laboral, pressuposto da indenização, não há como se desvincular o direito à reparação, ainda que fundada na responsabilidade aquiliana, da existência mesma do contrato de trabalho.
Para que o empregado tenha direito à indenização fundada na culpa do empregador, é preciso que a lesão tenha ocorrido no contexto da relação de emprego. Sem nexo causal entre o evento danoso e o contrato de trabalho, não haverá acidente de trabalho e, por conseguinte, inexistirá direito à reparação de natureza civil. Razoável, portanto, a conclusão de que a indenização a cargo do empregador, na hipótese de ter ele concorrido para o evento, constitui crédito diretamente relacionado ao contrato de trabalho (crédito trabalhista, portanto) e, como tal, sujeito aos prazos prescricionais próprios dos direitos trabalhistas.
Não bastassem estes argumentos, os próprios princípios que orientam o Direito do Trabalho, em especial aquele da norma mais favorável, autorizam a interpretação que ora se preconiza. Com efeito, embora na vigência do Código Civil de 1916 fosse altamente benéfica ao trabalhador a aplicação do prazo nele previsto, no particular, na medida em que vintenária a prescrição, a contar das modificações determinadas pelo Código Civil de 2002, que prevê, no artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, prazo de três anos para o exercício da pretensão de reparação civil, advogar-se a incidência deste reduzido lapso para reclamar em juízo as reparações por danos morais e materiais decorrentes de infortúnio laboral significa, na prática, coarctar o direito do trabalhador à indenização.
Acredita-se que não tardarão os empregadores a perceber que, mantendo em seus quadros o trabalhador vítima de infortúnio, além do período de garantia de emprego estabelecido no artigo 118, da Lei 8.213/91, pelo tempo necessário para consumação do lapso prescricional de três anos — prazo sensivelmente menor que o lustro de que trata o artigo 7º, XXIX, da CF — , abrirão a possibilidade de eximir-se de quaisquer responsabilidades por eventual culpa ou dolo na ocorrência do acidente do trabalho.
Raramente o empregado, diante do justificado temor de exercício, pelo empregador, do direito potestativo de residir o contrato de trabalho, após passado o período de garantia de emprego, atreve-se a exercitar, no curso da relação de emprego, o direito de ação . Veja-se que, segundo entendimento jurisprudencial consolidado, “o termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral.” (Súmula 278 do STJ).
Não faltará quem afirme de natureza cerebrina a argumentação ora deduzida. Todavia, a experiência demonstra que estratégias desta natureza são amiúde idealizadas a partir de posições doutrinárias que, embora aparentemente prenhes de cientificidade, culminam por determinar severos prejuízos aos direitos dos trabalhadores, estimulando ainda o descaso para com as normas de segurança, causa de inúmeras mortes, consoante registram as estatísticas. Não se olvide também o disposto no artigo 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum.”
Processos encaminhados pela Justiça Estadual à Justiça do Trabalho
Os fundamentos do instituto da prescrição autorizam que se preconize solução diversa para as ações ajuizadas perante a Justiça Estadual, que se encontram em fase de conhecimento, e encaminhadas à Justiça do Trabalho por força da EC 45/04 e da decisão do Supremo Tribunal Federal antes transcrita. Para estas hipóteses, a prescrição aplicável é a vintenária prevista no artigo 177, caput, do Código Civil de 1916, devendo, contudo, quando for o caso, ser observada a regra de transição prevista no artigo 2.028, do Código Civil de 2002.
Múltiplos são os motivos arrolados pela doutrina como determinantes do estabelecimento de limitações temporais para o exercício das pretensões em juízo: a ação destruidora do tempo, castigo à negligência do credor, abandono ou renúncia presumida do direito pelo titular que não o exercita no prazo legal, presunção de extinção do direito, restrição do número de demandas, proteção do devedor e interesse social.
Dentre os vários argumentos elencados pelos estudiosos do tema, desponta, por seu relevo, o interesse jurídico-social. A prescrição apaga a eficácia da pretensão. Evita que, a qualquer momento, ao exclusivo talante daquele que se diz credor, possa haver a demanda judicial, sob a alegação de violação do direito. Serve à paz social e à segurança jurídica, pilares sobre os quais se assenta a ordem pública. Embora a ação constitua meio posto à disposição do titular do direito violado ou ameaçado de violação para restabelecer a harmonia perturbada pela ofensa ao direito, a ausência de limitação para o exercício de tal direito causaria gravames maiores do que o desequilíbrio gerado pelo inadimplemento do devedor.
Sublinha Câmara Leal4 que a prescrição é medida de ordem pública, criada com o objetivo de evitar que a instabilidade do direito persistisse indefinidamente, em prejuízo da harmonia social, base do equilíbrio sobre que se assenta a ordem pública. A ação é o meio de que o titular do direito violado pode fazer uso para restabelecer a harmonia perturbada pela falta de cumprimento de uma obrigação, pela ameaça ou violação de um direito. Afirma o respeitado doutrinador5:
“Se o titular deste, porém, se conserva inativo, deixando de protegê-lo pela ação, e cooperando, assim, para a permanência do desequilíbrio antijurídico, ao Estado compete remover essa situação e restabelecer o equilíbrio, por uma providência que corrija a inércia do titular do direito. E essa providência de ordem pública foi que o Estado teve em vista e procurou realizar pela prescrição, tornando a ação inoperante, declarando-a extinta, e privando o titular, por essa forma, de seu direito, como justa conseqüência de sua prolongada inércia, e, por esse meio, restabelecendo a estabilidade do direito, pela cessação de sua incerteza.
Não deixa de haver, portanto, na prescrição, uma certa penalidade indireta à negligência do titular, e muito justificável essa pena, que o priva de seu direito, porque, com a sua inércia obstinada, ele faltou ao dever de cooperação social, permitindo que sua negligência concorresse para a procrastinação de um estado antijurídico, lesivo à harmonia social.”
Anteriormente à Emenda Constitucional 45/04, apenas vozes absolutamente isoladas proclamavam a competência da Justiça do Trabalho para conhecer e julgar ações de indenização decorrentes de acidentes de trabalho fundadas na culpa do empregador, em especial porque, conforme supra se assinalou, o entendimento tanto do Supremo Tribunal Federal como do Superior Tribunal de Justiça era de que a exceção prevista no artigo 109, I, da Constituição Federal também alcançava tais demandas, a cargo, então, da Justiça Estadual.
À época, não raro os juízes trabalhistas, embora convencidos de que a competência para apreciar ações da espécie era efetivamente da Justiça do Trabalho, optavam por declinar da competência, com a remessa dos autos à Justiça Estadual. Assim procediam para evitar prejuízo às partes.
Com efeito, a instrução e julgamento de demandas dessa natureza exigem especial cuidado na coleta das provas. Em geral, é indispensável a prova pericial, o que demanda tempo considerável. Vencidas essas etapas, proferida a sentença, com exame do mérito, havia a efetiva possibilidade de anulação do processo, em grau recursal, reiniciando-se a instrução processual, no juízo então havido competente, o que, sem dúvida, poderia determinar manifesto dano ao autor, constrangido a esperar anos intermináveis por uma decisão definitiva.
Justamente por estas razões é que os empregados vítimas de acidente do trabalho postulavam de seus empregadores perante a Justiça Estadual a indenização que entendiam devida. Assim procediam confiando no entendimento doutrinário e jurisprudencial então majoritário. Atendidos os fundamentos da prescrição supra enumerados, não se pode atribuir a tais empregados a pecha de negligentes, na medida em que exercitaram em juízo tempestivamente sua pretensão.
Puni-los com o mal da prescrição porque acreditaram na interpretação conferida pelas mais altas cortes de Justiça a dispositivo constitucional significa subverter os próprios fundamentos da prescrição, que busca justamente a paz social, o equilíbrio e a harmonia. Proclamar a prescrição trabalhista em ações da espécie, muitas vezes somente argüida quando o feito, já contestado na Justiça Estadual, é recepcionado na Justiça laboral, é impingir ao titular do direito, que diligentemente invocou a prestação jurisdicional em tempo oportuno, castigo indevido.
Também representa a legitimação da esperteza e da chicana, em manifesta afronta à consciência social que “não costuma aceitar que o direito desapareça apenas pelo passar do tempo e, ao contrário, censura o devedor que se ampara na prescrição como única justificativa para não pagar o que deve”.6
A prescrição, sendo um meio assegurado ao suposto devedor para inibir a pretensão — e nunca para aniquilar o direito subjetivo alegadamente descumprido pelo sujeito passivo — deve ser reservada àquelas situações onde aquele que se diz credor permitiu que o tempo fixado em lei para o exercício de sua pretensão escoasse, sem o ajuizamento da competente ação. Pune-se, assim, quem foi negligente e com esta postura contribuiu para que a situação de insegurança e desequilíbrio se mantivesse, ameaçando a paz social. Não pode, contudo, este relevante instituto ser utilizado, astuciosamente, apenas para coarctar o direito do trabalhador, que no tempo legalmente fixado invocou a prestação jurisdicional, de ver proclamada sentença final reconhecendo — ou não — seu direito às reparações decorrentes do acidente do trabalho.
Ilustrativo, a respeito, o ensinamento de Câmara Leal:7
“Se a prescrição priva o titular de sua ação, fazendo-o sofrer a perda de um direito, impõe-lhe, de fato, um mal. E, se essa imposição é motivada pela sua inércia, de que resultou um mal social, pelo estado antijurídico que não foi removido pela ação, representando essa inércia a falta de cumprimento de um dever social, não se poderá negar que o mal imposto pela prescrição é, efetivamente, uma repressão ao mal causado pela negligência do titular.
E, assim encarada, a prescrição apresenta o característico da pena, cuja clássica definição é: poena est malum passionis, propter malum actionis.
Nem se compreenderia a imposição de uma perda se essa não tivesse por fundamento de sua legitimidade alguma ação ou omissão do titular que a justificasse. Ora, sendo a perda da ação um mal, somente outro mal decorrente da inércia poderia justificá-lo.”
Cumpre relembrar que a prescrição não extingue o direito subjetivo material do credor. Desde que argüida pelo interessado, neutraliza a pretensão, retira do credor o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação. O direito do credor não desaparece. É, todavia, paralisada sua pretensão de reagir contra a violação do direito. Afirma, a respeito, Theodoro Júnior:8
Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2006
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