A escravidão e o direito no Brasil (XVI)
Carlos Fernando Mathias de Souza
Professor-Titular da Universidade de
Brasília e Magistrado (Diretor da Escola
de Magistratura Federal da 1ª Região)
A 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea, foi extinta a escravidão legal no Brasil.
Dolorosamente, a realidade aponta, em pleno século XXI, para a existência de uma
escravidão (ou algo assemelhado a ela), que se opera não só nas relações de trabalho (inclusive com o
trabalho exercido por menores), mas também com o tráfico das chamadas escravas brancas, tudo a revelar
até que ponto pode chegar a criminalidade organizada.
Com relação à mão de obra o quadro é tão dramático, a ponto de ser sido baixado pelo
Poder Executivo um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
Por outro lado, tramita no Congresso Nacional, a PEC 438/203, conhecida como a PEC
contra o trabalho escravo, objetivando, em termos mais precisos (e em síntese), a expropriação de terras
onde forem encontrados trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravos.
Segundo dados colhidos no Serviço de Repressão ao Trabalho Forçado do Departamento da
Polícia Federal, entre os anos de 2000 a 2004 (neste último, até de junho) tem-se o seguinte quadro: ano
2000, ação em 53 municípios (dos estados de Mato Grosso, Pará, Goiás, Minas Gerais, Piauí, Paraíba,
Ceará, Bahia, Rondônia, Tocantins, Roraima, Maranhão e Alagoas) foram fiscalizados 120
estabelecimentos e libertados 583 trabalhadores; em 2001, nos estados do Espírito Santo, Acre, Mato
Grosso, Pará, Goiás, Minas Gerais, Piauí, Tocantins e Maranhão, em 102 municípios, fiscalizados 317
estabelecimentos, 1433 trabalhadores foram libertados; em 2002, nos estados do Amapá, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais, Pará, Maranhão, Tocantins e Goiás, em 68 municípios, fiscalizados 95 estabelecimentos,
1741 trabalhadores resultaram libertados; em 2003, em ações em 85 municípios dos estados da Bahia,
Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia, com fiscalização em 134
estabelecimentos, nada menos que 3.361 trabalhadores foram libertados e, por último, até junho de 2004,
em 12 municípios, compreendidos nos estados do Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará e Tocantins,
de 35 estabelecimentos fiscalizados resultou a libertação de 457 trabalhadores.
São dados a merecerem profundas reflexões, inclusive sobre as condições, que esses
trabalhadores libertados, foram encontrados, integrando a força de trabalho nos ditos estabelecimentos,
objeto da fiscalização. Salta aos olhos, contudo, a expressividade dos números o que, de plano, conduz à
necessidade de um Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.
Dir-se-á que o Código Penal (D.L. 2898, de 7 de dezembro de 1940) já contem todo um
Título (o IV da Parte Especial) cuidando dos crimes contra a organização do trabalho, onde se encontra em
particular o art. 203, prevendo o tipo de frustração de direito assegurado por lei trabalhista. Ademais, a
Consolidação das Leis do Trabalho e a existência de uma Justiça do Trabalho, já seriam meios legais
eficazes para coibirem quaisquer abusos ou barreiras, no referente à prática de ilícitos que se caracterizam
como de trabalho escravo ou algo semelhante a isso.
Com efeito, está previsto no Código em destaque: “Frustrar mediante fraude ou violência,
direito assegurado na legislação do trabalho. Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da
pena correspondente à violência”.
E, no art. 207: “Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade
do território nacional (Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. Incorre na mesma pena quem
recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional,
mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do
seu retorno ao local de origem” ( (1º) e “A pena é aumentada de 1/6 (dezoito) anos,se a vítima é menor de
18 (dezoito) anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental”.
Outra realidade, que é também das mais preocupantes, é a das chamadas escravas brancas, o
que passa pelo favorecimento à prostituição e pelo tráfico de mulheres, dentre outros tipos penais.
A imprensa, vez por outra (e mais recentemente com certa assiduidade) notícia a existência
de uma rede internacional, liderada em particular, por país (ou países?) da Europa que alicia(m) mulheres
brasileiras, pagando-lhes as despesas de passagem aérea de ida e de entrega provisória de determinada
quantia que, logo após a chegada ao destino, é retomada, bem como apreendido o respectivo passaporte.
Enfim, a aliciada para a prostituição, fica sob o domínio do seu agente, tendo de pagar com o trabalho do
seu corpo todas as despesas (de transporte, alimentação, “ajuda de custo” etc), com a sua liberdade de ir e
vir tolhida, visto que, como já registrado, recolhido seu próprio passaporte.
Cumpriria lembrar que muitas ações internacionais, em particular de natureza policial, já são
conhecidas, com vista à repressão da prática odiosa.
De outra parte, forçoso é recordar que o Brasil adota, em seu Código Penal, o Capítulo V do
seu Título VI da Parte Especial (Dos Crimes contra os costumes), tipificando crimes conhecidos como de
lenocínio e o de tráfico de mulheres, este último crime internacional, isto é punível pela lei brasileira, ainda
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que cometido no estrangeiro.
Com efeito, o Brasil adota o princípio da extraterritorialidade com relação a determinados
crimes, dentre eles, aqueles a que se obrigou, por tratado ou convenção, a reprimir (art. 7º, II, a, do Código
Penal), onde se inclui, dentre outros, o tráfico de mulheres.
Assim, por efeito do princípio também conhecido como da Justiça Universal ou
Cosmopolita, fica, assim, sujeito à lei brasileira o crime cometido no estrangeiro por explorador do tráfico
internacional de mulheres.
Oportuno observar, sob a óptica do direito brasileiro, que o sujeito ativo de tal delito pode
ser qualquer pessoa, independentemente do sexo. Aliás, tais crimes, cujo objeto jurídico são os bons
costumes, com a proteção à honra sexual das mulheres contra exploradores internacionais do lenocínio, são,
em geral, praticados por diversos agentes (tratando-se, no mais das vezes, de criminalidade organizada em
rede com ramificações em diversos países).
Já o sujeito passivo é a mulher (muito embora, em tempos mais recentes, seja conhecida
largamente, também, a prática da prostituição masculina), como se observa claramente do texto do art. 231
do Código Penal: “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional de mulher que nele venha
exercer a prostituição, ou na saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro.”
De passagem, registre-se que os códigos penais italiano, polonês e suíço, por exemplo,
tutelam também o homem.
Também as normas penais, forçoso é admitir-se, não têm sido eficazes para coibir esse ilícito,
de muitos modos, semelhante à escravidão.
O alerta para essas manifestações, tidas como de trabalho escravo (de trabalhadores, em
especial no campo; de exploração ilegal de trabalho de menores; de tráfico de mulheres, para fins de
prostituição) é importante, pois em sendo insuficiente o já contido no ordenamento jurídico para coibi-las,
conduzirão por certo, ao aperfeiçoamento legislativo e a linhas de ações, com vistas à sua total erradicação.
(Carlos Fernando Mathias de Souza
Professor-Titular da Universidade de Brasília e
Magistrado (Diretor da Escola de Magistratura
Federal da 1ª Região)
13 de setembro 2004
nº 405
fonte: OIT Brasil
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