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domingo, 6 de janeiro de 2008

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

FERRAZ Júnior, Tércio Sampaio Ferraz

Absorção da hermenêutica tradicional.
Partir do caráter positivado das normas das constituições modernas.
Esta positivação foi uma das idéias que corporificaram o movimento
constitucionalista a partir do século XIX. Um dos traços centrais do Estado de Direito foi,
assim, a fixação de uma ordem estatal livre, na forma de normas positivas, sujeitas às formalidades
garantidoras da certeza e da segurança. Desta forma protegia-se a liberdade conforme a lei.
1.1.1. Isto exigiu, portanto, uma formalidade constitucional.
Esta formalidade conferia à constituição uma transparência e uma estabilidade
indispensáveis. Graças a ela, as constituições puderam submeter-se às regras usuais de interpretação.
Por seu intermédio chegava-se ao seu sentido e se controlava a sua eficácia. Sua estabilidade
decorria igualmente, não obstante as mudanças na realidade, das limitações postas por
estas regras.

Na tradição do século XIX europeu, essas regras correspondiam à fixação do
sentido vocabular (método gramatical), proposicional (método lógico), genético (método histórico)
e global (método sistemático), conforme as lições de Savigny e outros autores clássicos.
1.1.2. Interpretação de bloqueio.
Para efeito de uma hermenêutica constitucional voltada para o Estado de Direito
concebido, na visão liberal, como um estado mínimo, reduzido em suas funções, a interpretação
tinha o que se poderia chamar de uma orientação de bloqueio - interpretação de bloqueio
– na qual o princípio de estrita normatividade era peça nuclear da constitucionalidade.
Veja-se, por exemplo, o princípio hermenêutico da unidade da Constituição.
1.1.2.1. Hierarquia.
Este princípio nos obrigava a vê-la como um articulado de sentido. Tal articulado,
na sua dimensão analítica, é dominado por uma lógica interna que se projeta na forma de
uma organização hierárquica. Ou seja, uma Constituição, da mesma forma que o ordenamento
jurídico de modo geral, também conhece a estrutura da ordem escalonada, não estando todas as
suas normas postas horizontalmente uma ao lado da outra, mas, verticalmente, umas com força
relevante sobre outras. Concebê-la, pois, sem escalonamento seria implodir aquele articulado,
tornando-a destituída de unidade orgânica. Perdendo-se a unidade, perder-se-ia a dimensão da
certeza, o que faria a Constituição um instrumento de arbítrio, por força do aparecimento de
descontrolado de antinomias.
A noção de hierarquia, que conduz à aplicação de esquemas interpretativos
como a regra da superioridade e da especialidade, donde a possibilidade de interpretação restritiva,
em que constituições passam a ser concebidas como complexidade quantitativa e qualitativamente
crescente de suas disposições, passam elas a ser vistas como um sistema de
*Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Doutor em Filosofia pela Johannes Gutenberg Universität de
Mainz, Alemanha. Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da
USP. Membro do CONJUR – Conselho Superior de Orientação Jurídica e Legislativa da FIESP. Além de suas atividades
docentes, exerce a advocacia, como advogado de empresa em São Paulo.
Escola da
Magistratura
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normas coordenadas e inter-relacionadas que se condicionam reciprocamente (Cf. José Afonso
da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1968:37), torna-se inevitável o recurso
ao escalonamento e suas conseqüências analíticas (Cf. Karl Engisch, Einführung in das
dogmatische Denken, 1968:157).
Donde a presença do cerne fixo material representado pelos direitos fundamentais
e sua prevalência sobre as demais normas, bem como a diferença entre normas
que agasalham princípios, normas que instituem princípios, normas que têm um sentido
técnico de organização, normas que visam à própria aplicabilidade da constituição
etc. e a sua conseqüente imbricação formal conforme esquemas lógicos de identidade e
não-contradição.
1.1.2.2. Interpretação ex tunc.
Quando o interprete atua dentro destes limites, a interpretação de bloqueio
pressupõe que os preceitos constitucionais estatuem princípios e finalidades fundamentais,
em relação aos quais o intérprete não pode articular sentidos e objetivos senão aqueles que já
estejam reconhecidos ex tunc na própria constituição.
O regulador dogmático da interpretação de bloqueio é, pois, uma espécie
de princípio de proibição de excessos, isto é, proibição de articulações de interesses
protegidos “para além” da constituição sob a alegação de favorecer-lhes o exercício.
1.1.3. Interpretação por legitimação.
A questão muda de figura quando pensamos nas exigências postas ao Estado
Social. Neste, perceba-se a extensão do catálogo dos direitos fundamentais na direção dos
direitos econômicos, sociais e culturais, a consideração do homem concretamente situado, o
reconhecimento de um conteúdo positivo da liberdade, complexidade dos processos e técnicas
de atuação do Poder Público, a transformação conseqüente dos sistemas de controle da
constitucionalidade e da legalidade.
Esta unidade de sentido não se obtém se consideramos a Constituição sem
conexão com a própria realidade constitucional, enquanto uma experiência normativa, vivida
e concreta, da comunidade. Por isso, sua unidade de sentido não só tem uma dimensão
teleológica própria do sistema de valores que lhe é ínsito. Quando se fala de sistema de valores
é preciso, porém, precaver-se contra uma interpretação abstrata e por isso mesmo
incontrolável. A experiência alemã a esse propósito no entendimento da famosa Constituição
de Weimar e que conduziu aquele país às arbitrariedades do nazismo devia-nos servir de
exemplo. Assim, o reconhecimento de um sistema de valores não deveria conduzir à justificação
de quaisquer hipostasias significativas, na medida em que a superação de um método
positivista não deva significar uma perda do sentido da positividade do direito (Forsthoff,
Rechtsstaat im Wandel, 1976:134).
Seria preciso, pois, na interpretação constitucional, ter-se em conta a “forma
típica da constituição” e suas transformações (Forsthoff, 1976:160).
No limiar destas transformações que caracterizam a passagem, ou melhor, a
comp1icada convivência do Estado de Direito com o chamado Estado do Bem-Estar Social
ou Estado Social, Ruy Barbosa (apud Alípio Silveira, 19ó8, v .2:3) fazia observar que: “a
concepção individualista dos direitos humanos tem evoluído rapidamente, com os tremendos
sucessos deste século, para uma noção incomensurável nas noções jurídicas do individualismo,
restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já não se vê
na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais acasteladas cada qual
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no seu direito intratável, mas uma unidade orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por
limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo a moral, o indivíduo
a associação, o egoísmo a so1idariedade humana”.
Estas palavras de Ruy Barbosa apontam já para uma espécie de
“desformalização” da constituição, que ele certamente não encampava, mas que iria agudizarse
posteriormente. Mais ou menos a mesma época, Max Weber (Wirtschaft und Gesellschaft,
1976: 503 e ss.), um dos mais brilhantes sociólogos da formalização do direito como expressão
da racionalidade, já apontava para as tendências que iriam “favorecer uma dissolução do
formalismo jurídico”. Ele previa não só certa disparidade entre legalidades lógicas próprias
do pensamento formal jurídico e os efeitos econômicos visados como também a respectiva
expectativa.”. Surgiam, dizia ele, exigências materiais dos modernos problemas de classe, de
um lado, acompanhadas, de outro, de propostas de ideologias jurídicas que se guiavam por
critérios valorativos contidos na expressão social do direito, Weber, certamente, tinha em
mente uma flexibilização da interpretação de bloqueio por meio de uma consideração
axiológica, mas apontava também para algo que transcendia essa mera flexibilização.
O que Weber tinha em mente talvez pudesse ser esclarecido em termos de
uma distinção entre procedimentos interpretativos de bloqueio flexibilizados por considerações
axiológicas - hermenêutica tradicional - e procedimentos interpretativos de legitimação de aspirações
sociais à luz da constituição. Esta interpretação de legitimação, que só muito mais tarde
toma corpo, significa que certas aspirações se tornariam metas privilegiadas até mesmo acima
ou para alem de uma conformidade constitucional estritamente formal. Elas fariam parte,
por assim dizer, de uma pretensão de realização inerente à própria constituição.
Ora, a idéia, subjacente a esse procedimento interpretativo de legitimação, de
que constituições instauram uma pretensão de se verem atendidas expectativas de realização
e concreção só pode ser atendida, juridicamente, na medida em que se introduziu na
hermenêutica constitucional uma consideração transformadora, de ordem axiológica, da própria
realidade. Ou seja, pressupondo-se que uma constituição apresenta, no seu corpo
normativo, um sistema de valores, a aplicação das suas normas, por via interpretativa, se
torna uma realização de valores e não apenas de orientação valorativa do sentido dos dispositivos.
Com isso, o procedimento hermenêutico de captação do sentido do conteúdo das normas
toma-se realização valorativa conforme procedimentos próprios da analise e da ponderação
de valores. Note-se que não estamos falando aqui da oposição entre um método formalista
e um método culturalista, nem ignorando que mesmo a hermenêutica tradicional - de bloqueio
- sempre fez uso de valores que obrigam. O intérprete obriga-se a não se ater à letra da
norma, mas a buscar-lhe a ratio imanente, primeiro por meio de métodos teleológicos, sociológicos
e mesmo axiológicos, para depois visar a um procedimento interpretativo transformador
das realidades sociais: procedimento de legitimação.
Aqui não está em jogo nem a critica do positivismo de que a norma posta se
reduz ao texto prescritivo, nem a defesa de uma visão de que o direito e um fenômeno cultural,
estando suas normas imersas numa atmosfera social, política e econômica que constituem
seu meio vital. Na verdade, o problema é outro. Quando se opõem procedimentos
interpretativos de bloqueio e procedimentos de legitimação, o que entra em pauta e um problema
de como captar o sentido das constituições no momento em que, concebidas estas
como sistemas de valores, a hermenêutica se transforma num instrumento de realização política,
com base na qual a legislação procurara concretizar princípios e programas implicitamente
agasalhados peIo texto constitucional. Ou seja, a questão hermenêutica deixa de ser
um problema de correta subsunção do fato a norma - com sua carga lógica, histórica, sistemáEscola
da
Magistratura
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tica, teleológica e valorativa - para tomar-se um problema de conformação política dos fatos, isto e,
de sua transformação conforme um projeto ideológico.
Esta mudança corresponde a uma transformação de forma típica do Estado
constitucional enquanto o Estado de Direito burguês, que as constituições abandonam ou
alteram. Essa forma típica pressupunha uma distinção entre Estado e Sociedade como entidades
autônomas, o que obrigava as constituições a circunscreverem-se a regras gerais limitativas
da atividade do Estado. Nele, assinale-se a postura individualista, o primado da liberdade
no sentido negativo, da segurança formal e da propriedade privada, de um Estado concebido
como um “servo estritamente controlado da sociedade” (Carl Schmitt,
Verfassungslehre, 1928:125).
Agora, as tarefas postas ao Estado não só se multiplicaram, mas também se
modificaram. Exige-se do Estado a responsabilidade peIa conformação social adequada da
sociedade, ou seja, colocam-se para ele outras funções que não se casam plenamente com os
tradicionais limites do Estado de Direito.
Quando o interprete atua dentro destes limites, a interpretação de bloqueio
pressupõe que os preceitos constitucionais estatuem princípios e finalidades fundamentais,
em relação aos quais o intérprete não pode articular sentidos e objetivos senão aqueles que já
estejam reconhecidos ex tunc na própria constituição. O regulador dogmático da interpretação
de bloqueio e, pois, uma espécie de princípio de proibição de excessos, isto é, proibição
de articulações de interesses protegidos “para além” da constituição sob a alegação de favorecer-
lhes o exercício.
A questão muda de figura quando pensamos nas exigências postas ao Estado
Social. Neste, perceba-se a extensão do catálogo dos direitos fundamentais na direção dos
direitos econômicos, sociais e culturais, a consideração do homem concretamente situado, o
reconhecimento de um conteúdo positivo da liberdade, complexidade dos processos e técnicas
de atuação do Poder Público, a transformação conseqüente dos sistemas de controle da
constitucionalidade e da legalidade.
Como assinala Karl Loewenstein (Teoria de la Constitución, Barcelona, 1970,
p. 165 s.) há uma importante diferença entre o processo de reforma constitucional conforme
as regras previstas para o exercício do poder derivado e a chamada “mutação constitucional”,
caso em que se produz uma transformação na real configuração do poder político, da estrutura
social e do equilíbrio de interesses, sem que isto se reflita no texto da constituição que,
de resto, permanece intacto.
Ora, o problema de uma “mutação constitucional” aparece nesse quadro, dentre
outras, na concepção do princípio da legalidade. Isto se percebe na medida em que aqueles
princípios e essas exigências se entremeiam na realidade da prática social que, de uma parte,
pede uma situação de compromisso entre os diferentes grupos sociais, de outra, delimitações
normativas claras ao exercício do poder. A situação de compromisso é, nestes termos, um típico
problema de adequação entre meios e fins. Já as delimitações normativas, um problema de controle das
condições, independentemente dos fins a atingir. Seguem-se daí dois sentidos de legalidade a
esclarecer.
Não me refiro à conhecida distinção entre legalidade e legalidade estrita (poder
fazer tudo que a lei não proíbe e poder fazer apenas o que a lei permite), mas à distinção entre a lei
como estrutura condicional e a lei como estrutura finalística.
Estrutura condicional e finalística são formas de validade normativa e têm a
ver com a relação meio/fim (cf. Ferraz Jr. -Teoria da Norma Jurídica, São Paulo, 1999, p. 109
ss.). Trata-se de conceitos oriundos da cibernética que explicam a tomada de decisão e sua
24 Revista da Escola da Magistratura - setembro / 2006
programação. Uma decisão pode, assim, ser programada condicionalmente quando condições
(meios) são estabelecidas e tornadas vinculantes, independentemente de os fins condicionados
serem ou não atingidos. Já uma programação finalística estabelece e torna vinculantes
certos fins, de tal modo que os meios se tornam deles dependentes. Neste caso, quem assume
os fins, assume também a responsabilidade pelo encontro dos meios. No outro caso, quem
assume os meios, não tem responsabilidade sobre os fins, só pelo fiel cumprimento das condições.
Aceitando-se que a validade das normas expressa uma relação entre normas,
numa seqüência progressiva e regressiva ( a norma constitucional valida a infraconstitucional,
esta tem sua validade na norma anterior), é possível ver no processo de validação ora uma
programação condicional, ora finalística (cf. Ferraz Jr. 1999, p. 109 ss.).
Uma norma valida outra, condicionalmente, se preestabelece condições que
devem ser respeitadas e nestas condições localiza a validade da norma subseqüente, independentemente
se os fins normativos são ou não atingidos. Por exemplo, uma norma constitucional
que impõe uma vedação (proibição de instituir tributo que não seja uniforme) valida
normas legais que estatuam tributações, se respeitada a vedação, independente de se os fins
(provimento de recursos adequados às necessidades) estão ou não sendo alcançados.
Já uma norma valida outra, finalisticamente, se preestabelece fins que devam
ser alcançados, devendo ser encontrados os meios adequados. Neste caso, a validade da norma
subseqüente localiza-se na solidariedade entre fins e meios, donde a questão da validade
levantar problemas de proporcionalidade, razoabilidade, adequação etc. Por exemplo, é o
caso de uma norma constitucional que preestabeleça o regime legal para concessões e permissões
e nele o respeito aos direitos dos usuários, política tarifária e obrigação de manter
serviço adequado. Neste caso a validade constitucional da norma legal exige respeito à solidariedade
de meios e fins.
As duas formas de validação nem sempre estão radicalmente separadas na linguagem
do legislador. Cabe ao intérprete percebê-las e dar-lhes a devida relevância. Elas
afetam, nestes termos, o próprio sentido do princípio da legalidade, na medida em que a
ofensa ao princípio gera desrespeito a um comando constitucional e invalidade (condicional
e finalística).
O sentido de estrutura condicional da legalidade está em que, por exemplo,
a atividade administrativa, quer interfira com os direitos dos administrados, quer tenha
efeitos fora deste campo, só pode exercer-se com fundamento em lei. Em termos da relação
meio/fim, a lei como condição (meio) da atividade administrativa (fim) dá ao administrador
a equação completa da sua ação: ela concede ao agente competência, isto é, poder de praticar
aqueles atos ou de produzir as condições para que tenham lugar aqueles efeitos jurídicos que
forem postulados pelas necessidades do serviço considerado, necessidades que, porque previstas
pelo legislador, são as únicas que podem determinar o agente. Neste quadro, a
discricionariedade se reduz a um juízo de oportunidade. Não há distinção, por conseguinte,
entre conceitos indeterminados e conceitos discricionários: quando a lei se expressa por conceitos
indeterminados isto não abre ao agente a possibilidade de escolher entre um dos sentidos
possíveis, mas exige que ele encontre o sentido querido pelo legislador. E a atividade
regulamentadora da lei só pode ser para o seu fiel cumprimento.
Já o sentido de estrutura finalísitica da legalidade vê na lei não tanto uma
condição e um limite, mas, basicamente um instrumento de exercício da atividade administrativa.
Como instrumento, seu princípio hermenêutico está na solidariedade entre meios e fins, donde
a razoabilidade da atividade administrativa, submetida, então, a uma avaliação de sua eficiência.
Escola da
Magistratura
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Nestes termos, o respeito à legalidade exige do intérprete uma distinção entre
conceitos indeterminados e discricionários, bem como uma concepção da discricionariedade
que não se limita a um juízo de oportunidade, mas alcança os juízos de realidade (avaliação
de políticas de implementação de objetivos, de adequação dos meios escolhidos em face dos
fins propostos).
Quanto à distinção entre conceitos indeterminados e discricionários, deve,
então, o intérprete admitir que conceitos indeterminados não são indetermináveis, presumindo,
assim, que deve haver um sentido nuclear que cabe à jurisprudência encontrar. Já os
conceitos discricionários pressupõem uma pluralidade de sentidos que se determinam em
cada caso por escolha, mas que, renovadamente, abrem um leque de opções conforme as
circunstâncias. O conceito indeterminado tende a um fechamento, por via interpretativa. O
discricionário não se fecha nunca. O regulador hermenêutico do primeiro é a certeza e a
segurança. O do segundo, a eficiência e a adequação.
Neste quadro, a figura da delegação e sua legalidade adquire nuances que
merecem ser explicitadas.
Condicionada à previsão legal (legalidade em sentido de estrutura finalística
de legitimação), a correspondente delegação (direta ao órgão) não se confunde nem com as
delegações de fiel cumprimento nem com a lei delegada. Trata-se de uma forma de delegação
com base no princípio da eficiência e por este introduzida no ordenamento constitucional.
Assim, por exemplo, no caso da chamada atividade reguladora, sem ela ficaria vazio o princípio,
tanto no sentido de sua eficácia quanto no sentido de controle constitucional. Ou seja,
com base na eficiência, a delegação instrumental ganha contornos próprios que garantem à
independência das agências reguladoras seu supedâneo. Mas eficiência confere a elas também
limites próprios.
Este acaba por exigir os mencionados procedimentos interpretativos de
Iegitimação, que pressupõem que o intérprete esteja autorizado a articular e qualificar o interesse
público, coletivo, individual, posto como um objetivo pelo preceito constitucional, o
que implica uma certa discricionariedade hermenêutica. 0 interprete deve pressupor, nesse
caso, que os preceitos constitucionais estão submetidos a certos pressupostos. Alguns são de
ordem normativa condicional. Assim, os preceitos dirigidos a participação e a prestação positiva
do Estado Social são leges imperfectae, isto é, não são imediatamente realizáveis sem uma
atuação do próprio hermeneuta que deve, então, prover uma identificação dos meios possíveis
para a consecução de finalidades, quer sejam eles meios sociais ou técnicos, a fim de que
a norma possa ser efetiva. Outros são de ordem jurídico-funcional. Como se supõe que a
fixação constitucional de objetivos traduz valores que, no entanto, por si sós não permitem a
percepção de diretrizes vinculantes, cabe ao interprete direcionar a configuração da ordem
social desejada, a partir, da qual se dará o controle da constitucionalidade.
Os reguladores dogmáticos de uma interpretação de legitimação são, por isso,
um tanto abertos, flexíveis, como e o caso, por exemplo, da regra de proporcionalidade: os
fins articulados e qualificados devem estar na dependência dos meios disponíveis e
identificáveis, ou da regra de exigibilidade: o Estado Social esta vinculado a realização de seus
objetivos, cabendo ao interprete considerá-los sob o ponto de vista da sua viabilidade.
A título de exemplo do que estamos dizendo, veja-se o disposto no artigo 182,
§ 2º, da Constituição Federal. Depois de, no artigo 5º, XXIII e no artigo 170, III, estabelecer
a “função social da propriedade”, conceito obviamente valorativo, determina no mencionado
artigo 182, § 2º que “a propriedade cumpre sua função social quando atende as exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no piano diretor” (grifamos). A co-participa26
Revista da Escola da Magistratura - setembro / 2006
ção politicamente legitimadora do intérprete, neste caso, resulta evidente.
Atende-se, assim, para essa passagem, na vida constitucional brasileira, de um
Estado liberal burguês e sua expressão tradicional num Estado de Direito abstrato, para o
chamado Estado Social. Tal passagem, porém, não deve significar a exclusão do primeiro pelo
segundo, mas a sua transformação daquilo que a Constituição brasileira de 1988 chama de
“Estado Democrático de Direito” (v. Preâmbulo e art. 1º). Com esta noção se exprime obviamente
apenas a sujeição do Estado a procedimentos jurídicos e à realização de não importa
qual a idéia de direito, mas a sua subordinação a critérios materiais próprios.
As garantias proporcionadas pelo contorno constitucional do Estado de Direito
são, acima de tudo, delimitações, com sentido eminentemente técnico e normativo. Já os
objetivos exigidos pelo Estado Social pressupõem um Estado ativo, que desempenha funções
e exige meios para realiza-las. Em conseqüência - e este é um ponto fundamental para a
hermenêutica constitucional - enquanto para o Estado de Direito o fenômeno do poder é,
por definição, circunscrito e delimitado na Lei Magna, o perfil do Estado Social corre o risco
de se tornar incontrolável, pois nele as possibilidades de extensão das formas de dominação
são imensas, podendo atingir intensidades sutis, nos limites da arbitrariedade.
Ora, é dever do intérprete, ao analisar a unidade de sentido própria da Constituição,
evitar que o reconhecimento constitucional do Estado Democrático de Direito venha
a significar a utilização desvirtuada das necessárias funções sociais do Estado e meios correspondentes como um instrumento de poder. Acautela-se, deste modo, o poder público contra o risco de perverterem-se suas legítimas funções pelo excesso de poder escondido sob
a capa de formalismos obtusos ou de valorações abstratas.
Nesse sentido, uma interpretação por legitimação exige uma discriminação
das competências constitucionais conferidas ao legislador
Sobre a competência legislativa constitucionalmente conferida deve-se distinguir,
como o faz em sentido ligeiramente diferente E. Grabitz (Freiheit und
Verfassungsrecht, 1976:68), entre competência de qualificação legislativa plenamente vinculada,
vinculada positivamente e vinculada negativamente. No primeiro caso, o Constituinte
já fornece, de antemão, completa e abrangentemente, o sentido dos direitos e obrigações
constituídos, não podendo o legislador ordinário ampliar-lhes ou restringir-lhes aquele sentido
ainda que sob o argumento de favorece-los. No segundo, o Constituinte conforma o
sentido dos direitos e obrigações, mas atribui ao legislador ordinário a tarefa de explicitá-lo.
No terceiro, o constituinte dá uma linha de direção que não pode ser contrariada, conferindo
ao legislador ordinário, a contrario sensu, amplas possibilidades.
A título de exemplo, digamos que a norma “é livre a locomoção no território
nacional m tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer
ou dele sair com seus bens” (art. 5º, XV, da Constituição) corresponde a uma competência
de qualificação legislativa plenamente vinculada; já a norma “o imposto previsto no inciso
III-I - será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade
na forma da lei”; (art. 153, § 2º. I, da Constituição) corresponde a uma competência de qualificação
legislativa positivamente vinculada; e a norma “a política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes” (art. 182 da Constituição) corresponde a uma competência de
qualificação legislativa negativamente vinculada.

Fonte: TRT 2a região, revista da escola da magistratura, ano I, n. 1, 2006

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